MEMÓRIAS
Ele me tirava o sono. Havia meses que ele me tirava o sono. Acho que desde que o conheci ele me tirava o sono. Mas não era só isso que ele me tirava. Ele tirava minha concentração, minha paciência, minhas convicções e minha visão de mundo.

Sempre que cobrava qualquer atitude dele, ouvia desculpas –segundo ele, as mais sinceras– seguidas da mesma frase: é assim que as coisas são. E por um tempo eu me convenci que realmente era assim que as coisas eram. E comecei a achar que a errada era eu, que era eu quem tinha que flexibilizar minhas convicções, aceitar minhas emoções e parar um pouco de pensar sobre tudo.

Ele é que era o mais independente, mais sensato e o mais maduro. E era de um individualismo que eu nunca havia notado em pessoa alguma que estivesse tão próxima a mim.

E mesmo assim ele conseguia tirar tudo de mim. Mas não era como furto ou apropriação indébita. Era roubo mesmo. A mão armada. Ele nem tentava disfarçar que estava me roubando a alma e se apoderando da minha mente. E mesmo assim eu deixava. Achei que conseguiria dominar e restringir a ação dele.

Quando percebi, até meu coração já havia sido roubado. Meus pensamentos foram os primeiros, meu sono foi o último. Acordava e dormia –as poucas horas que dormia– pensando nele. Até meus sonhos ele roubou: estava presente em todos.

Há tempos ninguém me dominava dessa forma... se é que alguém o fez antes. Eram as melhores conversas, até quando não eram propriamente conversas e, sim, censuras. O seu sorriso era capaz de alegrar meu dia e sua tristeza, capaz de preocupar meu dia e torná-lo praticamente insuportável até que eu fizesse algo para mitigá-la. Eu me sentia responsável por ele, como se a felicidade dele dependesse de algum ato meu. Que ilusão. Que medo.

E assim passou-se vários dias. Meses. Até que um dia eu aceitei tudo o que estava sentindo. Aceitei a dominação. Aceitei o roubo. Aceitei as desculpas. Foi quando concluí que o amava... como há muito não amava mais. Mas sei que a recíproca jamais seria verdadeira. Ele jamais me amaria. Será por isso que o amava tanto?

Chorei por dias. Muitos dias. Na verdade, todo dia choro um pouco pensando nele. Até hoje.

Até que um dia reclamei por atenção e as desculpas vieram como o habitual: é assim que as coisas são. Foi só então que percebi que, na verdade, as coisas até poderiam ser assim... no mundo dele. Não que as coisas realmente fossem assim. Questionado, respondeu que não estava acostumado a lidar com expectativas, porque ele não tinha expectativas em relação a pessoa alguma. Ou seja, nada o decepcionava e tudo que fosse positivo era lucro. Expliquei que eu –e o resto do mundo– não funcionava assim e mudei minha conduta.

Não procurei mais. Não liguei mais e tomei a força todas as minhas coisas de volta. Com a mesma força que ele as tirou de mim. O individualismo dele fez quebrar algo dentro de mim. E nada consertado e colado é igual.

Ele continua lá. E eu aqui. Se é que um dia estivemos mais próximos do que isso. A minha paciência, minha concentração, minhas convicções, minha visão de mundo, meus sonhos e meu sono voltaram a ser meus. Mas agora tudo meio bagunçado, faltando partes, trincado, mal colado. E ele continua lá.