MEMÓRIAS
Ele me tirava o sono. Havia meses que ele me tirava o sono. Acho que desde que o conheci ele me tirava o sono. Mas não era só isso que ele me tirava. Ele tirava minha concentração, minha paciência, minhas convicções e minha visão de mundo.

Sempre que cobrava qualquer atitude dele, ouvia desculpas –segundo ele, as mais sinceras– seguidas da mesma frase: é assim que as coisas são. E por um tempo eu me convenci que realmente era assim que as coisas eram. E comecei a achar que a errada era eu, que era eu quem tinha que flexibilizar minhas convicções, aceitar minhas emoções e parar um pouco de pensar sobre tudo.

Ele é que era o mais independente, mais sensato e o mais maduro. E era de um individualismo que eu nunca havia notado em pessoa alguma que estivesse tão próxima a mim.

E mesmo assim ele conseguia tirar tudo de mim. Mas não era como furto ou apropriação indébita. Era roubo mesmo. A mão armada. Ele nem tentava disfarçar que estava me roubando a alma e se apoderando da minha mente. E mesmo assim eu deixava. Achei que conseguiria dominar e restringir a ação dele.

Quando percebi, até meu coração já havia sido roubado. Meus pensamentos foram os primeiros, meu sono foi o último. Acordava e dormia –as poucas horas que dormia– pensando nele. Até meus sonhos ele roubou: estava presente em todos.

Há tempos ninguém me dominava dessa forma... se é que alguém o fez antes. Eram as melhores conversas, até quando não eram propriamente conversas e, sim, censuras. O seu sorriso era capaz de alegrar meu dia e sua tristeza, capaz de preocupar meu dia e torná-lo praticamente insuportável até que eu fizesse algo para mitigá-la. Eu me sentia responsável por ele, como se a felicidade dele dependesse de algum ato meu. Que ilusão. Que medo.

E assim passou-se vários dias. Meses. Até que um dia eu aceitei tudo o que estava sentindo. Aceitei a dominação. Aceitei o roubo. Aceitei as desculpas. Foi quando concluí que o amava... como há muito não amava mais. Mas sei que a recíproca jamais seria verdadeira. Ele jamais me amaria. Será por isso que o amava tanto?

Chorei por dias. Muitos dias. Na verdade, todo dia choro um pouco pensando nele. Até hoje.

Até que um dia reclamei por atenção e as desculpas vieram como o habitual: é assim que as coisas são. Foi só então que percebi que, na verdade, as coisas até poderiam ser assim... no mundo dele. Não que as coisas realmente fossem assim. Questionado, respondeu que não estava acostumado a lidar com expectativas, porque ele não tinha expectativas em relação a pessoa alguma. Ou seja, nada o decepcionava e tudo que fosse positivo era lucro. Expliquei que eu –e o resto do mundo– não funcionava assim e mudei minha conduta.

Não procurei mais. Não liguei mais e tomei a força todas as minhas coisas de volta. Com a mesma força que ele as tirou de mim. O individualismo dele fez quebrar algo dentro de mim. E nada consertado e colado é igual.

Ele continua lá. E eu aqui. Se é que um dia estivemos mais próximos do que isso. A minha paciência, minha concentração, minhas convicções, minha visão de mundo, meus sonhos e meu sono voltaram a ser meus. Mas agora tudo meio bagunçado, faltando partes, trincado, mal colado. E ele continua lá.
MEMÓRIAS
Acordei. Dormi. Acordei de novo. Assisti uma parte de um filme ruim que passava na televisão. Dormi. Acordei uma vez mais. Tomei uma taça de vinho. Desisti do sono. Pensei. E pensei um pouco mais. Intentava responder o que será que me tirava o sono havia muitos meses. Foram muitas noites convivendo com a mesma pergunta. Acho que, hoje, comecei a respondê-la.

É o amor! Ou a falta dele. Comecei a repassar todos os amores passados e tentar reconstruir meus sentimentos, ou melhor, tentar definir meus sentimentos atuais. Passei uma a uma as histórias passadas. Concluí, com algum pesar, que muitas ainda vinham carregadas de ressentimento; outras, de expectavidas não concretizadas e, inexplicavelmente, ainda existentes. Pensei como o amor muda. Pensei que o mais interessante é o quanto nós mudamos por causa do amor. Pensei em quantas pessoas realmente amei. Pensei se amo alguém.

Mais uma taça de vinho... ou duas. Pensei se realmente já havia amado alguém de verdade. Comecei a pensar que não existe amor de verdade e que todos os sentimentos são uma construção psicológica involuntária para mitigar a solidão da própria existência humana. Mas aí lembrei que já amei apaixonadamente, loucamente, inconscientemente. E lembrei que me iludi. E lembrei que esperei em vão. E lembrei que chorei. E lembrei que me submeti ainda um pouco mais. E chorei um pouco mais.

Lembrei-me de Rosa. Lembrei-me de Carol e de tantas outras que passaram por minha vida. Como diz a música: pensei em ti, pensei em mim, chorei por nós. Pensei no que será do futuro. Tentei esquecer. Assisti mais um pouco do filme ruim. Tentei dormir mais um pouco. Tentei parar de pensar. Não consegui. Tomei mais muito do vinho. Pensei. Pensei. Pensei.

Até que pensei que se já amei uma vez apaixonadamente, desesperadamente, loucamente e (acho) infinitamente. Não preciso amar de novo para ser feliz. Posso sobreviver com o que sobrou desse sentimento. Acho que amei por mais tempo do que existirei nesse mundo. Acho que valeu por umas duas vidas. Então, não preciso amar de novo. Seria até injusto com o universo. Já gastei a minha quota de amor.

Esses dias acordei feliz --e passei quase o dia inteiro assim-- só porque passei a noite com Rosa me mostrando a luz rosa de Paris. Sonhei com a torre, os cafés... senti os cheiros que imagino devam existir e comi as comidas que acho que vou gostar --e nessa noite gostei. Acordei sorrindo e não lembro ter sentido tanta felicidade em muitos anos. Estava com Rosa em Paris --o que é prova que até um amor passado se reinventa na nossa imaginação. Será que devemos sobreviver ou viver? Será que podemos viver de imaginação? Não sei.

Mas tem algo que ainda gostaria de sentir: queria que, só para variar, alguém me amasse apaixonadamente, loucamente, insanamente e incondicionalmente! Já disse Fernando Pessoa, por seu pseudônimo Ricardo Reis, que "Quer pouco: terás tudo. Quer nada: serás livre". Eu quero quase tudo! Mas o amor de Carol não foi assim. E menos ainda o sei-lá-o-quê que Rosa sentiu. Maria também não me amou. Nem Clara. E depois daquele natal, Carolina foi Carol por mais alguns anos até que a chave dela abrindo a porta da minha casa parou de fazer sentido. Até que ela quis mais: quis uma família. Não pude dar isso a ela. Não quis dar isso a ela. E, assim, ela voltou a ser Carolina.


Mas lembrei que hoje é sábado... E amanhã é domingo. Será que será dia de pensar em Rosa? O vinho está gelado esperando. O cigarro não fumo mais. Mas o apartamento em frente ao parque ainda é o mesmo. Onde andará Rosa?
MEMÓRIAS
“Há um homem na praça vestido apenas com uma caixa de papelão”, ele disse. “Que triste”, respondeu ela. “Ah... isso é comum por aqui”, retrucou ele. Ela chorou. Impossível não refletir sobre a natureza humana. Será que é mau ter internalizado em toda uma sociedade que o mínimo, o meramente essencial –ou nem isso– é o comum? Será que chorar e entristecer-se torna uma pessoa boa?

O ser humano é, por natureza, contraditório. Sua constância é a inconstância. Assim é que sentimentos bons e maus disputam espaço na memória, no pensamento crítico e nas ações de cada um. E essa é uma disputa desigual, regrada ora pela conveniência, ora por valores.
 
É conveniente chorar à vista de uma cena tão triste quanto a de alguém que vive em busca apenas do mínimo. É o que se espera que seja feito. Chorar. Por que, então, algumas pessoas não o fazem? Não o fazem porque se chegou a um ponto de indiferença e de egoísmo que isso não importa mais. O ser humano não importa mais. Tanto faz se é bom ou ruim.

Mas tem os que choram por valores. Embora não haja mais espaço para valores na sociedade dita contemporânea. E não o fazem por qualquer reconhecimento de bondade. Fazem por necessidade. Afinal, bondade mesmo não é apenas reconhecer um problema e, sim, agir para solucioná-lo. E isso... quase ninguém faz.

 
MEMÓRIAS
ACHEI QUE COMBINAVA COM A ROSA...


Pior que o melhor de dois
Melhor do que sofrer depois
Se é isso que me tem ao certo
A moça de sorriso aberto
Ingênua de vestido assusta
Afasta-me do ego imposto
Ouvinte claro, brilho no rosto
Abandonada por falta de gosto
Agora sei não mais reclama
Pois dores são incapazes
E pobres desses rapazes
Que tentam lhe fazer feliz
Escolha feita, inconsciente
De coração não mais roubado
Homem feliz, mulher carente
A linda rosa perdeu pro cravo
Pior que o melhor de dois
Melhor do que sofrer depois
Se é isso que me tem o certo
A moça de sorriso aberto
Ingênua de vestido assusta
Afasta-me do ego imposto
Ouvinte claro, brilho no rosto
Abandonada por falta de gosto
Agora sei não mais reclama
Pois dores são incapazes
E pobres desses rapazes
Que tentam lhe fazer feliz
Escolha feita, inconsciente
De coração não mais roubado
Homem feliz, mulher carente
A linda rosa perdeu pro cravo
Homem feliz, mulher carente
A linda rosa perdeu pro cravo
[composição: Gugu Peixoto/Luis Kiari; gravada pela Maria Gadú]
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MEMÓRIAS
Ante a ausência de tempo para dar continuidade aos contos ou escrever algo mais inspirado, permiso para duas citações... no meu pensamento, sábias e complementares:

ISSO É MUITA SABEDORIA
Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho...o de mais nada fazer.
[Clarice Lispector]


A lição sabemos de cor. Só nos resta aprender.
[Fernandro Brant]
MEMÓRIAS
SUGESTÃO: LEIA O PRIMEIRO CONTO, O SEGUNDO CONTO E O TERCEIRO CONTO ANTES, OU NÃO...

Ele tinha cabelos castanho-claros, olhos de todas as cores –dependendo da cor da luz do dia ou da iluminação da noite– e sempre uma barba por fazer. Não sabia como Fábio deixava sempre essa barba por fazer: nunca realmente feita e nunca realmente barba. Mas sabia que, quando eu chegasse em casa, ele serviria meu vinho enquanto eu ia até o quarto tirar os sapatos e colocar rapidamente uns chinelos. Nunca gostei de andar de sapatos dentro de casa.

Aí começava, realmente, meu dia. Nós dois sentados no avarandado com vista para lugar nenhum. Apenas a rua que passava logo abaixo dos vinte e nove degraus da escadaria que conduzia até o portão. A rua que eu há muito conhecia. Conversávamos por horas. Sobre a infância, a família, a crise econômica, a compulsoriedade do trabalho, os amores que já haviam passado por nossas vidas. Conversávamos e sentíamos –ao menos eu sentia– aquele clichê básico de início de relacionamento: como se nos conhecêssemos de uma vida inteira e, não, apenas há dois meses. 

Dois meses antes disso, eu, cansada da vida que vivia, cansada do trabalho, cansada do marido, cansada de tudo e cansada até mesmo dos amigos, decidi sair e procurar por algo diferente. Não disse a ninguém. Simplesmente vesti uma roupa que não vestia há muito tempo e saí. Saí a procura de pessoas diferentes, conversas diferentes, histórias diferentes. Entrei em um bar do outro lado da cidade, que eu nunca havia entrado antes. Sentei. Pedi uma taça de vinho. Não tinha. Uma taça de espumante. Não tinha. Aí, já um pouco irritada, pedi a garrafa mesmo do vinho branco gelado. Ao menos estava gelado.

Comecei a me arrepender de ter saído. Afinal, por que mesmo ir a um lugar diferente? Não tinha a minha bebida, eu não conhecia pessoa alguma, não tinha com quem conversar. Roberto estava em casa a minha espera. Por que agora, por que hoje? Enfim, chegou o vinho. Sentei sozinha e servi a primeira taça. Observei tudo a meu redor. As paredes com cartazes de filmes antigos, mesas, cadeiras... um ar decadente que não sabia se era intencional ou não... Peguei meu celular e comecei a viajar na internet de blogs e outras histórias, seguindo minha busca pelo diferente. Mas, por mais que a maioria das histórias até parecesse o retrato de algo real, eu sabia que nunca colocamos no papel a verdadeira verdade. Sempre escrevemos nossa história de forma a nos preservar, a justificar nossas atitudes, a glamourizar os acontecimentos, a eternizar o efêmero. Por mais que escrevendo estejamos, assim, nos expondo, nossa história nunca representa a verdade. Nem esta história que agora estou contando é inteiramente verdadeira.

Enfim.... cansei das meias-verdades das meias-histórias que estava lendo na internet e voltei a me concentrar no que ocorria a meu redor. Afinal, saí buscando o diferente-real. Se fosse para conhecer o diferente-inventado, eu poderia ter ficado em casa. Assim retomei meu foco. Mas, mal deu tempo de desconectar o celular e dei de cara com ele sentado na mesa em frente –e incrivelmente próxima– a minha. Ele, bem de frente para mim. Olhos de todas as cores. Vidrados. Eu, ainda meio entorpecida por ter ficado tanto tempo alheia, perdida em um mundo virtual, não entendi direito o que me circundava.

Pensei: será que eu ainda tenho tempo para fazer tudo diferente? Em outras circunstâncias, em outros tempos, teria sentado à sua mesa, pedido um cigarro e dado um gole em sua bebida. Mas essa Rosa não é mais a mesma. Desviei o olhar, tomei mais um pouco do meu vinho, chamei o garçom, pedi o cardápio, não o deixei ir embora e já pedi um sanduíche. Tudo muito rápido. Tudo muito nervoso. Tudo muito ansioso. Tudo com pressa de estar subitamente ocupada.

Não adiantou. Ele permaneceu olhando fixo em minha direção. Levantou-se e começou a andar. Eu, desesperada, sem saber o que fazer, abri a bolsa e comecei a procurar por algo que nem eu sabia o que era. Ele passou por mim e não parou. Senti um misto de alívio e decepção. Parte de mim gostaria que ele tivesse parado, outra parte lembrou-se da estranheza que causa conhecer um mundo novo. Ele não voltou. Bebi o restante do vinho, comi um pedaço do sanduíche que eu nem gostei, paguei a conta e fui embora.

Dirigi até em casa pensando o quão fracassada havia sido aquela noite. Percebi que a Rosa não era mais a mesma e que havia mudado tanto que chegava a ficar aliviada por não ter que conversar com outra pessoa. Que preferia o diferente-inventado ao diferente-real. Afinal, quem eu pensava que era para achar que bastava o meu querer para imediatamente transformar Rosa? Essência não se muda! Mas qual era a minha essência mesmo?

Uma vez constatado que eu já tinha sido umas mil Rosas, quem seria Rosa afinal? E se eu não gostava mais da Rosa que estava sendo, poderia voltar a ser outra que já fui ou inventar uma que ainda não existiu? Não sabia. Entrei no quarto na ponta dos pés, troquei de roupa e deitei ao lado de Roberto. No mesmo lado. Há quatro anos. No mesmo lado. Do mesmo jeito. Uma constância que matou minhas inconstâncias.

Na noite seguinte, voltei sozinha ao bar do outro lado da cidade. Sem celular e com uma bolsa minúscula, apenas com chaves, documentos e dinheiro. Fui esperando encontrar o homem da mesa em frente. Não o encontrei. Chamei o garçom, pedi o cardápio. De repente, ele, com seus olhos coloridos por todas as cores, me surpreendeu já sentando à minha mesa, com vinho, duas taças e um cigarro aceso. O nome dele: Fábio.

Conversamos por um tempo. Ele contou que esteve em Paris, eu falei que há muito não via a luz rosa. Eu contei que era escritora e ele disse que estava escrevendo seu segundo livro. Perfeito, pensei. Ele disse que se separou há um ano porque a esposa não compreendia seu mundo de histórias e verdades inventadas. Eu pensei que podia compreender exatamente o que ele dizia. Eu não disse que era casada. Ele me deu um beijo como os de cinema, me agarrou pela cintura e juntou minha cadeira a sua.

Na noite seguinte, eu, novamente, no bar no outro lado da cidade. Ao mesmo tempo livre e ao mesmo tempo protegida de olhos conhecidos. Precisava estar com aquele dos olhos coloridos. Assim passei quinze dias. Quinze dias atravessando a cidade. Quinze dias inventando verdades para Roberto. Quinze dias no mundo de Fábio. Mundo excitante. Mundo diferentemente real. E eu que ansiava tanto pelo diferente...

Percebi, então, que essa era a oportunidade. E estava ali, na minha frente. Percebi que era minha chance de mudar. Percebi que aquela Rosa estava morrendo e que urgia inventar uma outra... inédita, real. E eu precisaria das verdades inventadas por Fábio para isso. Assim, arrumei a mala sem que Roberto entendesse o que acontecia. Expliquei que a Rosa estava morrendo e que precisava de outro mundo para viver, mas ele não entendeu e ainda perguntou: que rosa? Ora que rosa, esta Rosa! Não adiantava. Ele nunca iria entender. Combinei uma data para buscar minha parte dos móveis, deixei a cópia da chave na palma de sua mão, dei-lhe um beijo e saí em busca de outro mundo.

Voltei, junto com Fábio, para a casa de minha infância. Há anos aquela casa estava fechada. Sempre quis vender, mas nunca tive coragem. Talvez sempre soubesse que um dia voltaria para lá. E ele era o homem mais maravilhosamente excitante que eu conhecia. Fábio entregou seu apartamento alugado e mudou-se comigo, levando consigo sua mobilha e seu mundo. Mundo perfeito, que se encaixava exatamente no meu.

Criamos nossa própria constância. Ele passava o dia em casa, escrevendo seu livro. E eu seguia a minha rotina de sempre, com minhas histórias. Cada dia uma história diferente, uma nova verdade inventada. No fim do dia é que meu dia começava: ele servia o vinho e nós conversávamos sobre tudo. E cada vez eu tinha certeza que era assim que deveriam ser as coisas. A casa, ele, seus olhos coloridos, nosso mundo inventado movido pela imaginação.

Passados quase três meses, o livro de Fábio já estava perto do fim e eu não sabia sobre o que tratava a história. Ele nunca me deixou ler. Sempre disse que eu só leria quando estivesse publicado. E nossa constância peculiar seguiu. Engrenagem em perfeito funcionamento. Mas, um dia, cheguei em casa no fim da tarde e ele me serviu um vinho quente. Onde estaria o que deixei na geladeira? Mas não perguntei, só pensei. Coloquei uma pedra de gelo em meu vinho. Sentei em seu colo de frente para ele, acendi um cigarro e bebi assim mesmo. Ele não me olhou, nem me abraçou. Apenas colocou o cigarro no cinzeiro sem apagar, me deu um beijo demorado e arrebatador como os de cinema, como o primeiro... e me deixou sozinha na sala. Eu o segui até o quarto e deitei a seu lado. Mas ele se virou imediatamente para a parede. Dormimos assim: lado a lado e cada um para um lado.

Na manhã seguinte, saí cedo e Fábio ainda dormia. Passei o dia com uma sensação estranha que eu não conseguia compreender de onde vinha. Não eram as vozes em minha mente. Era como que um aperto no meu coração. Acho que era medo. Acho que era amor. Quando cheguei em casa o amor continuava, mas o medo tinha ido embora. Junto com a televisão, parte da mobilha, o carro dele na garagem, todas suas roupas e seu mundo. Em cima da pia, um cigarro mal apagado no cinzeiro, uma garrafa do meu vinho preferido no balde com gelo, uma taça de cristal azul, a cópia da chave e um bilhete com o esboço da dedicatória do livro:

“Para aquela que melhor entendeu meu mundo de histórias e verdades-inventadas; para aquela cujo mundo e imaginação preencheram o meu até que nada mais de meu sobrasse nele; para aquela que tive de abandonar para continuar a existir... para Rosa.”

Acho que procurando pelo diferente, acabei encontrando o igual. E assim descobri que nenhuma das Rosas que fui ou que venha a ser expressará a essência de quem sou. Descobri que a inconstância é a essência de Rosa! E, ao que parece, de Fábio também. Abri o vinho, servi-o na taça azul, sentei-me no avarandado e contemplei a vista há tanto conhecida e sempre diferente.


MEMÓRIAS

Dia desses conversava com uma amiga e fiquei chocada com o fato de que ela não viu a maioria dos filmes que toda criança dos anos 80 e adolescente dos 90 viu... em especial os mais passados na sessão da tarde e sessão aventura. Desde então comecei a fazer esta lista. Cada vez que eu lembrava de um filme daquele tempo, colocava na lista.

Nem todos são dos anos 80-90... mas são filmes que eu vi nos anos 80-90 e gostei muito de ter visto... embora alguns só eu tenha visto e outros, que são considerados clássicos, eu não vi porque não quis (tipo história sem fim, rambo, indiana jones, etc)!!!

Obviamente, não é tudo que eu vi dessa época.... mas é tudo mais voltado para público criança/adolescente que eu consegui me lembrar do título e acho inadmissível que alguém não tenha visto!!! O critério: nada além do que meu gosto pessoal.

Ah... a ordem é totalmente aleatória... foi de acordo com o funcionamento da minha memória.


(1) curtindo a vida adoidado

(2) gatinhas e gatões (sixteen candles)

(3) a garota de rosa shocking

(4) viva, a babá morreu (super legal sobre uma guria que se passa por secretária executiva para ganhar grana quando a mãe viaja e a babá morre)

(5) de volta para o futuro (todos, mas o último é meio chato)

(6) e.t

(7) se meu fusca falasse (todos)

(8) se minha cama voasse (sobre uma mulher que faz curso de bruxaria por correspondência)

(9) secretária de futuro (adoro.... fazia meu pai tirar repetidas vezes na locadora)

(10) olha quem está falando (o 01 e o 02)

(11) shirley valentine (uma mulher que falava com as paredes e, de repente, resolve realizar o sonho de viajar para a Grécia.... paisagens lindas e história interessante!!)

(12) terms of enderment (é com a shirley maclaine... mas é é legal)

(13) o entardecer de uma estrela (é a continuação do anterior... mas é mais legal) 

(14) dirty dance (bem romance adolescente, mas mostrando algumas desigualdades e preconceitos sociais)

(15) tomates verdes fritos (lindo, lindo, lindo... embora deixe implícito o que no livro da Fannie Flagg é explícito)

(16) flashdance (cenas "históricas"...)

(17) a primeira noite de um homem (esse é, na verdade, do fim dos anos 60)

(18) a fantástica fábrica de chocolates (com os oompa-lumpas e tudo!!!)

(19) lua de cristal (é da xuxa, mas é bonitinho)

(20) super xuxa contra o baixo-astral (deixou a maioria das crianças sem falar como Guilherme Karam por um bom tempo)

(21) se eu fosse minha mãe ("Freaky Friday".... mas o de 1975, que gerou a refilmagem com a Lindsay Lohan em 2005... eu vi os dois e, embora a tecnologia tenha ajudado na solução de vários problemas do primeiro --com as vozes--, eu ainda gosto mais do primeiro)

(22) mulher nota 1000 (dois nerds fazem uma mulher no computador)

(23) Christiane F, drogada e prostituida (tu não foste adolescente se não viste... as freiras proibiram no colégio e eu aluguei na locadora)

(24) Kids (idem.... não foste adolescente se não viste.... mas não é tão legal quanto o anterior)

(25) house party (que Tisha Campbell, aquela mulher do seriado "My wife and kids", atua como adolescente ainda)

(26) os batutinhas (se tu não sabes quem é o alfalfa... lastimável)

(27) lagoa azul 1 e 2 (imprescindível... só passava na tv à noite, pq a brooke shields aparecia só com os cabelos tapando os peitos... depois começou a passar na sessão da tarde)

(28) loucademia de polícia (acho que o primeiro é o mais engraçado)

(29) as minas do rei salomão (toootal sessão aventura ou assemelhado... o dos anos 80, com a sharon stone)

(30) minha mãe é uma sereia (com a cher, winona ryder e christina ricci)

(31) as bruxas de Eastwick (jack nicholson está muito bem... tem a cher também)

(32) férias frustradas e suas seqüências (mas o primeiro é o melhor... eles apreciando a vista do grand canyon é ótima)

(33) ghost

(34) pretty woman

(35) pulp fiction (clássico)

(36) grease (clássico também, o 01 e o 02)

(37) instinto selvagem (do início dos anos 90... o 2 é recente, mas eu achei meio fraquinho)

(38) garotas selvagens (esse já é mais novo.... final dos 90)

(39) diabólica (fins dos 90 tb)

(40) esqueceram de mim (01 e 02)

(41) os filmes dos trapalhões

(42) a última prostituta (início dos 90, filme estadunidense com a sônia braga... ela dubla ela mesma.. hehehe)

(43) da magia à sedução (fim dos 90... é bem legal)

(44) don juan (imperdível... com o johnny depp, claro)

(45) jovens, loucos e rebeldes (início dos 90... já vi um milhão de vezes... deve ser um dos campeões da sessão da tarde)

(46) as patricinhas de beverly hills (tem uma cena ótima: as duas meninas estão se falando pelo celular e, de repente, se encontram.... eu achava isso muito bizarro.... quando que celular ia ser tão acessível assim?)

(47) carrie, a estranha (os dois valem a pena)

(48) sociedade dos poetas mortos

(49) surf no hawaii (é dos anos 80... todos tem que saber o que é ser "a soul surfer"... hehehehe)

(50) caravana da coragem (com uns ursinhos... coisa mais fofa)

(51) karate kid (imperdível o treinamento do guri lixando e pintando uma cerca)

(52) rocky

(53) falcão, o campeão dos campeões (com o stallone também)

(54) caça-fantasmas (o primeiro)

(55) gremlins (se não sabes o que não se pode fazer com um gremlin.... lastimável... vá que tu encontra um no teu caminho)

(56) um dia a casa cai (eles dividindo a casa ao meio com uma fita é fantástico)

(57) lassie (esse tu já deves ter visto)

(58) before sunrise (fim dos 90... tem a continuação acho que em 2005 ou 2006... não lembro)

(59) o pai da noiva (é engraçado...)

(60) um príncipe em NY


Cansei.... digam aí o que faltou, conforme o gosto de vocês, é claro!!!!


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MEMÓRIAS
Abri o blog hoje, depois de um dia extremamente difícil, com excelentes notícias!!!!

Por conta do post no blog da irmã de uma colega minha --interessantíssimo, aliás, sobre como é viver e trabalhar em NY--, que remeteu aos contos que aqui publiquei, recebi, em menos de 24h, mais de 40 acessos!!!!!

Muito obrigada por lerem o que escrevo!!!
MEMÓRIAS
SUGESTÃO.1.: LEIA O PRIMEIRO CONTO ANTES, OU NÃO...

Valentina. Valentina Rosa Marques. VR. Valentina Maques. VM. Valentina Rosa. São muitas de mim em uma só. Assim, saímos sozinhas, acompanhadas apenas de nós mesmas. No cinema, Valentina. No restaurante, Valentina Rosa. Assinando uma história, VR. Tentando vender uma história, Valentina Rosa Marques. Mas, também, poderia ser Valentina Rosa Rosa. Ou, apenas Rosa.

Mas não sou uma apenas para cada evento. Sou uma para cada cidade e, definitivamente, uma para cada um. No Rio, sou tímida e deslumbrada com tudo e todos a minha volta. Ganhei Gustavo. Em Curitiba, sou delicada e elegante. Ganhei Romeu. Em São Luis sou arrojada, mas um tanto inerte; contagiada pelo som que inunda a cidade, ganhei Pedro... e Caio, também.

Em Barcelona, sou independente e audaz. Ganhei Ricardo, mas tive que mostrar a ele que ele deveria era tentar ganhar Pablo. Em Paris, sofisticada, fútil e intelectual. Ganhei Maurice. E o tive por um ano inteiro sob a luz rosa dos meus dias. Em Havana, marxista e revolucionária. Ganhei Fidel –que não era o Castro... e nem casto. Em Porto Alegre, sou todas as outras: tímida e arrojada; delicada e revolucionária; fútil e marxista; elegante, intelectual e audaz; sofisticada, um tanto inerte... mas, sobretudo, independente. Ou, simplesmente, Rosa.

Da mesma forma que somos muitas, precisamos de muitos que compreendam cada uma de nós. Assim, muitos me apresentaram seus mundos. Muitos falsearam seus mundos. Em alguns mundos, apenas fui uma visitante mais ou menos discreta. Mas, de alguns mundos gostei. E fiquei. Fiquei só até que uma ânsia que não sei de onde vem, uma inquietação, um desespero, uma inadequação me atingisse e me impedisse de continuar naquele mundo que até então parecia o melhor. As outras que moram em mim começam a brigar por seu espaço aos gritos dentro da minha mente. E quando seus gritos fazem eco em meu coração, percebo que ele não passa de um órgão vazio. Sem móveis. Como que uma casa abandonada há anos. Talvez haja somente uma cadeira com um vestido hoje velho –mas que, há poucos dias, era novinho e eu não tirava do corpo por nada. Assim começa a minha procura por novos mundos. Novos mundos que, por algum tempo –ou por muito tempo–, preencham esse órgão vazio com suas histórias, seus desejos, sua cultura e suas ambições.

Da última vez que os gritos das muitas que moram em mim ecoaram em meu coração, deixei Paris. Deixei Maurice. A luz rosa, também deixei... em busca de outra Rosa. Voltei a Porto Alegre e senti que era hora de voltar a ser todas em uma só e, não mais, apenas a sombra de nós todas. E, mais uma vez, sai de cena Valentina Rosa, para dar lugar somente a Rosa.

Em Porto Alegre, retomei a faculdade de Letras tentando me formar ainda naquele semestre –consegui. Como é estranho lembrar essas coisas. Hoje não consigo me imaginar sem minha profissão, meus prazos, meus artigos, meus contos. Parece que isso é muito do que eu sou. Então o que eu era antes de ser isso? Bom... acho que isso é umas das coisas que estou tentando descobrir. Enfim... continuo, então.

Foi complicado retomar a faculdade depois de dois anos viajando por aí. Na verdade, não só a faculdade, mas a vida mesmo. Foram muitas semanas sendo Valentina Rosa Marques e tentando vender minhas histórias. Eu não queria ser VR, queria ser apenas Rosa. Afinal, eu abandonei a luz rosa por Rosa. Até que, após muita insistência, um professor gostou de uma história que escrevi e mostrou para um amigo. Aí, antes mesmo de terminar a faculdade, começaram meus prazos. Os prazos que estabelecia –e estabeleço– a mim mesma para a duração das coisas. Prazos fatais.

Um dia, cansada um pouco de tantos prazos e de tanta fatalidade, aceitei o convite de alguns colegas e fui para um bar próximo ao centro da cidade. Para mim era totalmente contramão. Na época eu morava na zona sul –não que eu gostasse, mas era mais barato. Cheguei lá e todos queriam que eu contasse sobre as viagens, os lugares e os mundos que conheci. Não podia dizer que me havia cansado de tantos mundos. Não podia dizer que era [sou] muitas em uma só. Não podia dizer que ouvia gritos constantes e cada vez mais altos em minha mente. Não podia dizer que para mim todos os prazos eram fatais... e eles eram vários. O que iriam pensar de mim? Louca, certamente.

Assim, contei sobre a música de São Luis, as artes de Paris e a moda em Barcelona. Contei da dança e dos charutos de Cuba, dos trambiques do Rio e do frio de Curitiba. Contei da vontade de ir a Rússia. Da viagem à Grécia que não saiu. Mas não contei que a viagem não saiu porque os gritos começaram a fazer eco. Acho que, na verdade, eles nunca entenderam porque eu só falei o óbvio. Mas ouviram assim mesmo. Meio desinteressados e desapontados.

Uma hora cansei. Não podia contar o que mais importava: a impressão que tive. Não podia contar como tudo pareceu, porque, aí, eles descobririam que somos muitas em uma só. Mas, em meio a todo esse discurso improvisado, percebi ele. Ele sentado sozinho. Ele parecendo cansado de tudo. Ele me olhando. Ele. Lindo, alto, segurando um cigarro que não fumava e um copo de vinho que bebia. Então parei.

Sentei em sua mesa. Tomei do seu vinho e pedi um cigarro. Me deu. Achei engraçado o jeito que ele me olhava. Meio que com respeito por todos os lugares que eu conhecia. Meio que com admiração pelo discurso sem-graça que eu fiz. Só ele mesmo para achar que meu mundo tinha alguma coisa além de uma casa vazia. Só ele mesmo para achar que meu mundo existia. Mas eu gostava do jeito que ele me olhava.

O bar fechou. Ele morava perto. Não sei bem como, mas acabei tomando mais um vinho em sua casa. Era estranho o fato dele parecer me conhecer tanto, enquanto eu nada sabia sobre ele. Queria que ele me mostrasse seu mundo. Afinal, precisava de móveis para minha casa vazia. E ela era tão grande... Mas ele não respondia. E o que dizia não fazia sentido.

- Ah... então tu faz jornalismo?
- Sim.
- Trabalha com o que?
- Correção gramatical.
- E o que jornalismo tem a ver com isso?
- Nada.

Tomei mais um vinho e, exausta de tanto tentar conhecer o mundo dele, dormi. A seu lado na cama. No dia seguinte acordei. A seu lado na cama. Aqueles olhos continuavam me olhando. Gostei. Ele realmente via um mundo em mim. Comecei a acreditar que esse mundo realmente existia. Aí... a Rosa ficou audaz, decidida. Não disse palavra, corri as mãos por seu rosto e pousei-as sobre seus olhos de um azul que eu achava que não existia. Não. Não podiam ser olhos de verdade. Não tive como não beijar aqueles olhos e depois aquela boca. Aquela mesma boca que não me dizia o que eu tanto ansiava saber. Que insistia em não me mostrar seu mundo.

Ele me dominava, talvez, sem perceber. Com seus olhos, seu sorriso, sua língua e suas mãos. E eu gostei. Por um tempo que pareceu muito tempo. Que pareceu o maior tempo. E que, pela primeira vez em tanto tempo, não era fatal. Por esse tempo ele conheceu mundo. Meu mundo de muitas em uma só. Parecia que ele também podia ouvir os gritos que eu escuto. Por esse tempo, os gritos não tiveram onde ecoar, pois a casa estava toda mobiliada. Cheia de armários, prateleiras, pufes e até tapetes –que, mesmo provocando minha alergia, estavam ali. E eu não me importei. Eu quis que ficassem. Só que não era a mobília dele. Era minha. Eu queria ele cada vez mais. Não sei se ele me queria. Mas sei que ele me entendia. Ou parecia entender. Nesse momento eu percebi que jamais lhe diria não. Mas ele nada pediu.

Eu levantei. Me vesti e saí de seu apartamento com frente para Redenção, deixando a porta entreaberta. Ele não disse palavra. Eu não disse palavra. E, assim, sem dizer palavra, eu apresentei meu mundo para ele. O mundo que eu só percebi que existia porque visto pelos olhos azuis dele. O mundo que eu só descobri quando ele me negou o dele. O mundo que era muito mais do que os gritos, muito mais que a mobília que outros levavam consigo quando partiam.

Agora, não dependia de mim. Não era mais eu quem decidia. Ele ficaria se quisesse. Mas ele não me seguiu. Não ficou. Me deu tudo sem dar nada de si. Uma sala cheia que continuou cheia mesmo sem ele. Os gritos viraram sussurros. Todas aquelas que vivem em mim andam quietas. Parece que respeitam mais Rosa do que a si mesmas. Porque Rosa tem algo que elas não têm: o mundo. Mas ele, ele continua sendo meu passado que não passa. Aquele que me deu o mundo. Aquele que me negou seu mundo. Aquele que complicou meu mundo.

Será que eu signifiquei algo no mudou dele? Será que ele se lembra do meu mundo? Não sei. E acho que nunca vou saber.

SUGESTÃO.2.: LEIA O TERCEIRO CONTO, OU NÃO...

MEMÓRIAS
Convescote. Nome antigo para piquenique. Mas piquenique não é um nome antigo também? Aliás, quem, hoje em dia, faz piquenique? Ou convescote? Pensei isso enquanto olhava pela janela do apartamento com frente para o parque. um casal caminhava em direção ao seu centro, com algumas sacolas e uma garrafa de vinho, além de toalhas e copos mal embrulhados. Nada como as cestas que vemos nos desenhos infantis. Pensei em Rosa.

Ao menos uma vez por mês eu penso em Rosa. No final de domingos. São dias com uma rotina própria, peculiar. Acordo num rompante de sonho interrompido, tentando lembrar algo que nunca aprendi. Fico na cama, fito o teto. Como que impedido de levantar enquanto minha memória não responder a esta busca. Quando consigo sair da cama, passo a manhã procurando por não-sei-quê. Procuro sem saber ao certo o que devo encontrar, mas sei que tenho que procurar. Não lembro o almoço. Esqueço o telefone. Não ouço a campainha. Não entro na internet. Fico inerte. E não por um motivo específico, mas simplesmente porque é assim que as coisas acontecem quando é dia de pensar em Rosa.

A tarde geralmente é de sol, mas teve uma vez que choveu granizo e mesmo assim eu pensei em Rosa. São tardes que passo em frente à janela, imóvel, parado, como que fora do mundo. Mas inquieto e tomado por um desejo que nada supre. Então, quando o sol começa a baixar, sinto chegando devagarzinho os pensamentos em Rosa. Sua imagem, pouco a pouco, vai-se tornando clara a minha frente. Abro uma garrafa de vinho –que já fica na geladeira sempre esperando por estes dias em que penso em Rosa. Acendo um cigarro, sento-me confortavelmente na cama e espero que qualquer coisa a qualquer instante leve meu pensamento à Rosa. Pronto! O convescote.

Conheci Rosa há alguns anos atrás em um bar da modinha da época. Ela era amiga de uns colegas da faculdade, tinha acabado de voltar da França e estava retomando os estudos de Letras, pretendendo se formar aquele semestre. Eu ainda precisei de mais dois anos. Aquele dia eu não sabia que ela era Rosa-partida. Aquele dia, eu somente vi uma Rosa-mulher fascinante que gostava de contar longas histórias sobre lugares desconhecidos... e as contava bem. E sabia disso. Tinha todo um gestual próprio: mãos agitadas que se movimentavam muito e, de quando em quando, passavam pelos cabelos lisos; olhar penetrante que fazia qualquer um prestar atenção ao que ela dizia. Quando falava, parecia que seu corpo todo falava.

Eu só via Rosa. Rosa via todo mundo e fingia não me ver. Uma hora Rosa parou... não que as histórias tivessem terminado, mas Rosa cansou. Olhei para os lados e só vi Rosa. Há mais de duas horas Rosa só falava pra mim. Na verdade, nossos amigos continuavam no bar, mas Rosa só falava pra mim. E eu que pensava que Rosa não me via.

Enfim, sentou-se à minha mesa, tomou do meu vinho e perguntou onde eu morava. Era perto. O bar fechou, fomos tomar mais um vinho lá em casa. Aí foi a minha vez de falar. Só que eu não tinha histórias para contar e, as poucas que tinha, não sabia contar como Rosa. Assim foi que o que deveria ser o meu monólogo transformou-se em uma entrevista de Rosa. Ela perguntava. Eu respondia. Sucinto, impactado pelo olhar de Rosa.

- Ah... então tu faz jornalismo?
- Sim.
- Trabalha com o que?
- Correção gramatical.
- E o que jornalismo tem a ver com isso?
- Nada.

Eu não conseguia responder. Rosa fascinava. Eu não. Não sei o que Rosa queria aquela noite. Nunca soube. Mesmo depois, ela nunca me disse. Mas eu queria Rosa. Não sei bem o porquê, mas sei que queria Rosa. O vinho começou a fazer efeito e eu queria Rosa cada vez mais. Mas Rosa dormiu. Ao meu lado na cama, Rosa-morfeu.

Passei a noite olhando Rosa. Não consegui dormir. Então Rosa acordou. Não disse palavra, só me olhou. No fundo ela sabia que eu não tinha conseguido dormir, inebriado pelo perfume de Rosa, pelo jeito de Rosa e pelas palavras de Rosa. E Rosa –que fascinou pelas palavras– calou. Correu as mãos pelo meu rosto e pousou-as sobre meus olhos. Deitou-se sobre mim e começou a sussurrar coisas eu não entendia. Beijou-me. Ah que beijo bom o de Rosa... macio e forte, decidido, molhado e doce. Eu nunca havia beijado uma mulher assim, mas era isso que queria desde o momento em que vira Rosa.

E Rosa continuou. Ela sabia o que fazia, sabia aonde ir e sabia que teria de me guiar. Como guiou pela Paris de suas histórias. Parecia que eu havia esperado toda a vida por Rosa, ou por aquela sensação, não sei. Meus sentimentos se confundiram e já não sabia o que era Rosa e o que era eu. Por alguns instantes meu corpo não me pertencia... mas era eu quem sentia. E Rosa gostou.

Então se vestiu. Não disse palavra. Deu-me um beijo, abriu a porta e foi embora a deixando entreaberta. Como se fosse voltar ou quisesse que eu a seguisse. E eu fiquei ali, parado, inerte, estático, totalmente tomado por Rosa e perdido por Rosa.

E nunca mais vi Rosa. E nunca mais soube de Rosa. E nunca mais soube de alguém que soubesse de Rosa. E nunca mais encontrei alguém como Rosa. Assim foi que eu conheci uma Rosa-partida que até hoje não sei se mudou sua vida por causa da minha. Mas, de vez em quando, algo me faz lembrar de Rosa e sinto tudo novamente.

Agora que consigo reconhecer a rotina dos dias em que penso em Rosa, aprendi a me preparar para eles. Mas já tiveram dias em que fui surpreendido ou sem o vinho, ou atendendo um telefonema bem naquela hora em que os pensamentos em Rosa estão se formando. Aí eles vão embora... Tiveram outros dias que começaram parecendo ser dias de pensar em Rosa, só que eu senti fome. E almocei. E aí percebi que o dia me enganou. Não era um dia de pensar em Rosa. Mas, às vezes, sou eu quem engana o dia. Já teve até uma quinta que eu acordei como nos dias de Rosa, então fingi que era domingo para ver se pensava em Rosa. E pensei.

Será que se fizéssemos convescotes a minha Rosa teria sido mais minha? Porque aí eu poderia pensar em Rosa todos os dias e não só nos dias de pensar em Rosa. Todo dia seria dia de Rosa. E, se nos tivéssemos encontrado mais uma ou duas vezes, talvez as manhãs chuvosas de quarta ou as noites quentes de segunda também fossem dias de pensar em Rosa.

SUGESTÃO: LEIA O SEGUNDO CONTO, OU NÃO...
MEMÓRIAS
Desejo a todos --o que me inclui-- muita sorte em 2010!!!! Tudo vai dar certo no final, se nao deu certo 'e porque ainda nao chegou ao fim! Frase-hino do otimistas de plantao, mas que est'a valendo para 2010!! Nao que eu acredite em amuletos da sorte, como o tal trevo que vai reproduzido abaixo. Mas ele simboliza socialmente a palavra sorte. Como eu desejo que ela seja 'muita'... posto uma foto beeem grande do tal trevo de quatro folhas! Hehehe!!

















[foto de Carla Rocha, dispon'ivel em http://br.olhares.com/trevo_da_sorte_foto2024393.html]
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