MEMÓRIAS
Acordei. Dormi. Acordei de novo. Assisti uma parte de um filme ruim que passava na televisão. Dormi. Acordei uma vez mais. Tomei uma taça de vinho. Desisti do sono. Pensei. E pensei um pouco mais. Intentava responder o que será que me tirava o sono havia muitos meses. Foram muitas noites convivendo com a mesma pergunta. Acho que, hoje, comecei a respondê-la.

É o amor! Ou a falta dele. Comecei a repassar todos os amores passados e tentar reconstruir meus sentimentos, ou melhor, tentar definir meus sentimentos atuais. Passei uma a uma as histórias passadas. Concluí, com algum pesar, que muitas ainda vinham carregadas de ressentimento; outras, de expectavidas não concretizadas e, inexplicavelmente, ainda existentes. Pensei como o amor muda. Pensei que o mais interessante é o quanto nós mudamos por causa do amor. Pensei em quantas pessoas realmente amei. Pensei se amo alguém.

Mais uma taça de vinho... ou duas. Pensei se realmente já havia amado alguém de verdade. Comecei a pensar que não existe amor de verdade e que todos os sentimentos são uma construção psicológica involuntária para mitigar a solidão da própria existência humana. Mas aí lembrei que já amei apaixonadamente, loucamente, inconscientemente. E lembrei que me iludi. E lembrei que esperei em vão. E lembrei que chorei. E lembrei que me submeti ainda um pouco mais. E chorei um pouco mais.

Lembrei-me de Rosa. Lembrei-me de Carol e de tantas outras que passaram por minha vida. Como diz a música: pensei em ti, pensei em mim, chorei por nós. Pensei no que será do futuro. Tentei esquecer. Assisti mais um pouco do filme ruim. Tentei dormir mais um pouco. Tentei parar de pensar. Não consegui. Tomei mais muito do vinho. Pensei. Pensei. Pensei.

Até que pensei que se já amei uma vez apaixonadamente, desesperadamente, loucamente e (acho) infinitamente. Não preciso amar de novo para ser feliz. Posso sobreviver com o que sobrou desse sentimento. Acho que amei por mais tempo do que existirei nesse mundo. Acho que valeu por umas duas vidas. Então, não preciso amar de novo. Seria até injusto com o universo. Já gastei a minha quota de amor.

Esses dias acordei feliz --e passei quase o dia inteiro assim-- só porque passei a noite com Rosa me mostrando a luz rosa de Paris. Sonhei com a torre, os cafés... senti os cheiros que imagino devam existir e comi as comidas que acho que vou gostar --e nessa noite gostei. Acordei sorrindo e não lembro ter sentido tanta felicidade em muitos anos. Estava com Rosa em Paris --o que é prova que até um amor passado se reinventa na nossa imaginação. Será que devemos sobreviver ou viver? Será que podemos viver de imaginação? Não sei.

Mas tem algo que ainda gostaria de sentir: queria que, só para variar, alguém me amasse apaixonadamente, loucamente, insanamente e incondicionalmente! Já disse Fernando Pessoa, por seu pseudônimo Ricardo Reis, que "Quer pouco: terás tudo. Quer nada: serás livre". Eu quero quase tudo! Mas o amor de Carol não foi assim. E menos ainda o sei-lá-o-quê que Rosa sentiu. Maria também não me amou. Nem Clara. E depois daquele natal, Carolina foi Carol por mais alguns anos até que a chave dela abrindo a porta da minha casa parou de fazer sentido. Até que ela quis mais: quis uma família. Não pude dar isso a ela. Não quis dar isso a ela. E, assim, ela voltou a ser Carolina.


Mas lembrei que hoje é sábado... E amanhã é domingo. Será que será dia de pensar em Rosa? O vinho está gelado esperando. O cigarro não fumo mais. Mas o apartamento em frente ao parque ainda é o mesmo. Onde andará Rosa?
MEMÓRIAS
“Há um homem na praça vestido apenas com uma caixa de papelão”, ele disse. “Que triste”, respondeu ela. “Ah... isso é comum por aqui”, retrucou ele. Ela chorou. Impossível não refletir sobre a natureza humana. Será que é mau ter internalizado em toda uma sociedade que o mínimo, o meramente essencial –ou nem isso– é o comum? Será que chorar e entristecer-se torna uma pessoa boa?

O ser humano é, por natureza, contraditório. Sua constância é a inconstância. Assim é que sentimentos bons e maus disputam espaço na memória, no pensamento crítico e nas ações de cada um. E essa é uma disputa desigual, regrada ora pela conveniência, ora por valores.
 
É conveniente chorar à vista de uma cena tão triste quanto a de alguém que vive em busca apenas do mínimo. É o que se espera que seja feito. Chorar. Por que, então, algumas pessoas não o fazem? Não o fazem porque se chegou a um ponto de indiferença e de egoísmo que isso não importa mais. O ser humano não importa mais. Tanto faz se é bom ou ruim.

Mas tem os que choram por valores. Embora não haja mais espaço para valores na sociedade dita contemporânea. E não o fazem por qualquer reconhecimento de bondade. Fazem por necessidade. Afinal, bondade mesmo não é apenas reconhecer um problema e, sim, agir para solucioná-lo. E isso... quase ninguém faz.