MEMÓRIAS
Ela sempre acordava primeiro. Tocava o despertador e eu fingia que não ouvia. Ela abria uma fresta da janela. Daquelas persianas que abrem para cima. Entrava um pouco de luz, ainda mais porque a cama ficava bem em frente. Aí ela dizia para eu começar a acordar e entrava no banho. Saía do banho e eu continuava na cama. Ouvia o barulho do secador. Quando ela voltava para o quarto eu, ainda na cama, ficava só olhando ela se arrumar toda. Perfumes, maquiagens, brincos, colares. Tudo eu queria fazer igual a ela. Chegávamos na cozinha e o café já estava pronto. Ela preparava meu pão e me obrigava a comer, mesmo eu dizendo que não comia pão de manhã. Na verdade, não comia pão em momento algum. Nunca gostei. Daí saíamos juntas para o trabalho. 

No fim da tarde, quando eu chegava primeiro, esperava por ela deitada naquelas cadeiras reclináveis que fazem massagem quando acionado o controle-remoto. Assistia TV e comia castanhas. Aí ela chegava. Dava risada e dizia que a casa dela definitivamente era meu sonho de consumo. Eu sempre respondi que sim. E eu sentia que sim. Então conversávamos por horas, jantávamos e íamos dormir. E eu sempre negociava para que a TV ficasse ligada. Não consigo dormir se a TV não estiver ligada. E não adiantar ligar o rádio. Se for rádio, eu não durmo porque na minha loucura não posso perder a próxima música. Afinal, a próxima música pode mudar minha vida --e pode mesmo. 


E era sempre assim. Mas hoje não foi assim. Eu dormi com a TV ligada na sala. Acordei e não consegui mais dormir. Continuei vendo TV até não ter mais nada para ser visto. Muitas horas depois fui sozinha para o quarto. Liguei a TV do quarto também. Não precisei negociar nada com ninguém. Dormi. Acordei sozinha. Sem despertador. Ninguém abriu uma fresta da janela. Não tinha barulho de secador e nem cheiro de perfume. Na verdade, eu custei até para achar uma pasta de dentes no banheiro. Na cozinha, o café não estava pronto e ninguém preparou meu pão. Eu mesma fiz um chá e comi um pão sem manteiga, sem geléia, sem coisa alguma. Agora eu como pão de manhã. Tinha a louça da minha janta na noite anterior. Que eu fiz sozinha e comi sozinha. Lavei e fui trabalhar. Sozinha. 


A casa dela, definitivamente, não é mais meu sonho de consumo. Na real, eu percebi que nem gosto da decoração tanto quanto eu gostava antes. A cadeira reclinável não tem mais graça e mesmo que eu comesse castanhas não haveria propósito de ficar ali. Afinal, ela não vai chegar. Percebi que o lance todo era ela. O que tornava a casa dela meu sonho de consumo era porque era dela. Porque ela estava lá. E não está mais. Essa foi a primeira noite normal que eu dormi na casa dela sem ela. Levei quase quatro anos para fazer isso. Achei que seria tranqüilo. Nem tanto.
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2 Responses
  1. Muito legal o texto!!

    Adorei o seu blog!

    bjus


  2. Anônimo Says:

    nossa....me emocionei!!!


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