MEMÓRIAS
Gosto de sangue. Tinha me esquecido como era: amargo e doce. Mordi o lábio e cortou, acho que foi forte demais. Está muito frio e estou sentada sozinha num  Café charmoso na Cidade Baixa --que tem aqueles aquecedores a gás--, tomando um vinho, lendo um livro e esperando a sessão do cinema começar. Perfeito para uma mulher solteira. Fui ao cinema, voltei para tomar outra taça e comer alguma coisa. 

Pego o livro novamente, mas as pessoas a minha volta tornam-se mais interessantes do que o livro. A mesma mesa, do mesmo Café, há duas horas atrás não era tão interessante quanto agora. Antes, final de tarde, apenas alguns que conseguiram sair do trabalho mais cedo, ou estudantes, ou aposentados que resolveram ir ao cinema. Agora, início de noite, famílias, casais, amigos começam a se reunir para o tal happy hour e, não necessariamente, vão ao cinema. Enfim, comecei a prestar atenção. 

A minha frente uma mesa com três pessoas: duas mulheres e um homem. Todos já mais velhos, passando ou beirando os 60. Elas, muito peruas mas meio decadentes; e ele, querendo parecer mais do que é. Quando sentaram, recém tinha chegado minha segunda taça de vinho. Inicialmente não consegui entender bem o papel que cada um desempenhava naquela relação. Primeiro pensei que fosse um casal e a cunhada. Depois, vi que não. As mulheres pareciam amigas, mas meio que competiam pela atenção do cara: quem falava mais, quem gesticulava mais, etc. E o cara eu achei que talvez fosse algum amigo de muito tempo que estava visitando a cidade, sei lá. Mas ele não parecia desconfortável com a competição que as duas mulheres criaram, mas também não demonstrava interesse por qualquer delas. Aí ele começou a falar de tipos de vinhos --querendo demonstrar um conhecimento que claramente não possuía--, olhou a carta, quase pediu um cabernet básico. Aí resolveu tomar caipirinha, frisando ao garçom: "de cachaça". Ou seja.... a mais barata!! Enquanto eu tomei mais duas taças de vinho, ele seguia na mesma caipirinha... discutiram o preço da tábua de frios, pediram, e seguiram naquela relação angular e pouco transparente no que refere à intenção de cada um em relação ao outro, deixando muitas dúvidas para os espectadores. Achei muito complicado. 

Volto ao meu livro e meu vinho. Duas páginas, dois capítulos, Candace Bushnell discorrendo sobre a vida dos novaiorquinos nas altas baladas, o menáge a trois como forma institucionalizada e permitida de traição, etc etc. Eis que, senta-se um casal ao meu lado. Casal jovem, talvez mais novos que eu. Cardápio. Aí começa o diálogo que me motivou novamente a interromper o livro e prestar atenção na vida alheia. Ele: "Quem sabe uma tábua de frios, você gosta? Ah... prefere panquecas." Ela: "Tomamos um vinhozinho? Ah... acha que não está frio o suficiente; prefere cerveja." Ou seja, claramente estavam em um first date. Era um desconforto de ambos pelo desconhecimento do que, talvez, se a história tiver seqüência, será o trivial. Tipo ele odeia panquecas e ela não toma cerveja nem amarrada. Depois de diagnosticar que estava ocorrendo ao meu lado um verdadeiro first date, comecei a pensar. Acho que o desconforto de ambos indicava que esta história não teria muita continuidade. Veja: não me pareceu haver aquela curiosidade recíproca sobre a vida do outro, pareceu mais um encontro entre pessoas que ou não possuíam muita coisa em comum, ou não empreenderam qualquer esforço para que isso acontecesse... ou as duas coisas!!! Novamente, achei muito complicado, concluí que não gostaria de estar naquela situação e que preferia a minha de taça de vinho e meu livro. 

Mas inevitável lembrar o que li há alguns anos atrás sobre "meias-conversas". Se estamos parados em algum lugar de relativa circulação de pessoas ouvimos várias "meias-conversas". Como o caso dessas duas mesas que eu referi. Depois ainda chegou mais um casal que eu achei que o cara fosse pai da guria... mas logo descobri que não e parei de olhar, voltando novamente ao meu livro. Problemas de prestar atenção em "meias-conversas"... às vezes a gente se engana! Mas tudo que é "meio" sempre me intrigou. Principalmente a idéia muito vendida pela mídia de que somos parte, que precisamos encontrar a outra parte que nos completa para, só assim, sermos inteiros. Ora ora ora!!! Somos inteiros!!! Não preciso de ninguém que "me complete"... quero alguém que some, que agregue valor... mas, lamento: já somos todos inteiros! E isso é o que é. Mas aí é tema para outra postagem, porque essa já foi longe demais.
 
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