MEMÓRIAS
Convescote. Nome antigo para piquenique. Mas piquenique não é um nome antigo também? Aliás, quem, hoje em dia, faz piquenique? Ou convescote? Pensei isso enquanto olhava pela janela do apartamento com frente para o parque. um casal caminhava em direção ao seu centro, com algumas sacolas e uma garrafa de vinho, além de toalhas e copos mal embrulhados. Nada como as cestas que vemos nos desenhos infantis. Pensei em Rosa.

Ao menos uma vez por mês eu penso em Rosa. No final de domingos. São dias com uma rotina própria, peculiar. Acordo num rompante de sonho interrompido, tentando lembrar algo que nunca aprendi. Fico na cama, fito o teto. Como que impedido de levantar enquanto minha memória não responder a esta busca. Quando consigo sair da cama, passo a manhã procurando por não-sei-quê. Procuro sem saber ao certo o que devo encontrar, mas sei que tenho que procurar. Não lembro o almoço. Esqueço o telefone. Não ouço a campainha. Não entro na internet. Fico inerte. E não por um motivo específico, mas simplesmente porque é assim que as coisas acontecem quando é dia de pensar em Rosa.

A tarde geralmente é de sol, mas teve uma vez que choveu granizo e mesmo assim eu pensei em Rosa. São tardes que passo em frente à janela, imóvel, parado, como que fora do mundo. Mas inquieto e tomado por um desejo que nada supre. Então, quando o sol começa a baixar, sinto chegando devagarzinho os pensamentos em Rosa. Sua imagem, pouco a pouco, vai-se tornando clara a minha frente. Abro uma garrafa de vinho –que já fica na geladeira sempre esperando por estes dias em que penso em Rosa. Acendo um cigarro, sento-me confortavelmente na cama e espero que qualquer coisa a qualquer instante leve meu pensamento à Rosa. Pronto! O convescote.

Conheci Rosa há alguns anos atrás em um bar da modinha da época. Ela era amiga de uns colegas da faculdade, tinha acabado de voltar da França e estava retomando os estudos de Letras, pretendendo se formar aquele semestre. Eu ainda precisei de mais dois anos. Aquele dia eu não sabia que ela era Rosa-partida. Aquele dia, eu somente vi uma Rosa-mulher fascinante que gostava de contar longas histórias sobre lugares desconhecidos... e as contava bem. E sabia disso. Tinha todo um gestual próprio: mãos agitadas que se movimentavam muito e, de quando em quando, passavam pelos cabelos lisos; olhar penetrante que fazia qualquer um prestar atenção ao que ela dizia. Quando falava, parecia que seu corpo todo falava.

Eu só via Rosa. Rosa via todo mundo e fingia não me ver. Uma hora Rosa parou... não que as histórias tivessem terminado, mas Rosa cansou. Olhei para os lados e só vi Rosa. Há mais de duas horas Rosa só falava pra mim. Na verdade, nossos amigos continuavam no bar, mas Rosa só falava pra mim. E eu que pensava que Rosa não me via.

Enfim, sentou-se à minha mesa, tomou do meu vinho e perguntou onde eu morava. Era perto. O bar fechou, fomos tomar mais um vinho lá em casa. Aí foi a minha vez de falar. Só que eu não tinha histórias para contar e, as poucas que tinha, não sabia contar como Rosa. Assim foi que o que deveria ser o meu monólogo transformou-se em uma entrevista de Rosa. Ela perguntava. Eu respondia. Sucinto, impactado pelo olhar de Rosa.

- Ah... então tu faz jornalismo?
- Sim.
- Trabalha com o que?
- Correção gramatical.
- E o que jornalismo tem a ver com isso?
- Nada.

Eu não conseguia responder. Rosa fascinava. Eu não. Não sei o que Rosa queria aquela noite. Nunca soube. Mesmo depois, ela nunca me disse. Mas eu queria Rosa. Não sei bem o porquê, mas sei que queria Rosa. O vinho começou a fazer efeito e eu queria Rosa cada vez mais. Mas Rosa dormiu. Ao meu lado na cama, Rosa-morfeu.

Passei a noite olhando Rosa. Não consegui dormir. Então Rosa acordou. Não disse palavra, só me olhou. No fundo ela sabia que eu não tinha conseguido dormir, inebriado pelo perfume de Rosa, pelo jeito de Rosa e pelas palavras de Rosa. E Rosa –que fascinou pelas palavras– calou. Correu as mãos pelo meu rosto e pousou-as sobre meus olhos. Deitou-se sobre mim e começou a sussurrar coisas eu não entendia. Beijou-me. Ah que beijo bom o de Rosa... macio e forte, decidido, molhado e doce. Eu nunca havia beijado uma mulher assim, mas era isso que queria desde o momento em que vira Rosa.

E Rosa continuou. Ela sabia o que fazia, sabia aonde ir e sabia que teria de me guiar. Como guiou pela Paris de suas histórias. Parecia que eu havia esperado toda a vida por Rosa, ou por aquela sensação, não sei. Meus sentimentos se confundiram e já não sabia o que era Rosa e o que era eu. Por alguns instantes meu corpo não me pertencia... mas era eu quem sentia. E Rosa gostou.

Então se vestiu. Não disse palavra. Deu-me um beijo, abriu a porta e foi embora a deixando entreaberta. Como se fosse voltar ou quisesse que eu a seguisse. E eu fiquei ali, parado, inerte, estático, totalmente tomado por Rosa e perdido por Rosa.

E nunca mais vi Rosa. E nunca mais soube de Rosa. E nunca mais soube de alguém que soubesse de Rosa. E nunca mais encontrei alguém como Rosa. Assim foi que eu conheci uma Rosa-partida que até hoje não sei se mudou sua vida por causa da minha. Mas, de vez em quando, algo me faz lembrar de Rosa e sinto tudo novamente.

Agora que consigo reconhecer a rotina dos dias em que penso em Rosa, aprendi a me preparar para eles. Mas já tiveram dias em que fui surpreendido ou sem o vinho, ou atendendo um telefonema bem naquela hora em que os pensamentos em Rosa estão se formando. Aí eles vão embora... Tiveram outros dias que começaram parecendo ser dias de pensar em Rosa, só que eu senti fome. E almocei. E aí percebi que o dia me enganou. Não era um dia de pensar em Rosa. Mas, às vezes, sou eu quem engana o dia. Já teve até uma quinta que eu acordei como nos dias de Rosa, então fingi que era domingo para ver se pensava em Rosa. E pensei.

Será que se fizéssemos convescotes a minha Rosa teria sido mais minha? Porque aí eu poderia pensar em Rosa todos os dias e não só nos dias de pensar em Rosa. Todo dia seria dia de Rosa. E, se nos tivéssemos encontrado mais uma ou duas vezes, talvez as manhãs chuvosas de quarta ou as noites quentes de segunda também fossem dias de pensar em Rosa.

SUGESTÃO: LEIA O SEGUNDO CONTO, OU NÃO...
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2 Responses
  1. Deb Says:

    Nossa guria!
    Vai escrever um livro. Dois ou mais!

    Amo!!!!
    São 2:47 da madruga e cá estou! Apaixonada pelos teus contos!


  2. MEMÓRIAS Says:

    obrigada!!!
    que bom que gostaste...
    tem mais uns, mas ainda estão no forno!! hehehe!!!

    bjão,


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