MEMÓRIAS
SUGESTÃO: LEIA O PRIMEIRO CONTO, O SEGUNDO CONTO E O TERCEIRO CONTO ANTES, OU NÃO...

Ele tinha cabelos castanho-claros, olhos de todas as cores –dependendo da cor da luz do dia ou da iluminação da noite– e sempre uma barba por fazer. Não sabia como Fábio deixava sempre essa barba por fazer: nunca realmente feita e nunca realmente barba. Mas sabia que, quando eu chegasse em casa, ele serviria meu vinho enquanto eu ia até o quarto tirar os sapatos e colocar rapidamente uns chinelos. Nunca gostei de andar de sapatos dentro de casa.

Aí começava, realmente, meu dia. Nós dois sentados no avarandado com vista para lugar nenhum. Apenas a rua que passava logo abaixo dos vinte e nove degraus da escadaria que conduzia até o portão. A rua que eu há muito conhecia. Conversávamos por horas. Sobre a infância, a família, a crise econômica, a compulsoriedade do trabalho, os amores que já haviam passado por nossas vidas. Conversávamos e sentíamos –ao menos eu sentia– aquele clichê básico de início de relacionamento: como se nos conhecêssemos de uma vida inteira e, não, apenas há dois meses. 

Dois meses antes disso, eu, cansada da vida que vivia, cansada do trabalho, cansada do marido, cansada de tudo e cansada até mesmo dos amigos, decidi sair e procurar por algo diferente. Não disse a ninguém. Simplesmente vesti uma roupa que não vestia há muito tempo e saí. Saí a procura de pessoas diferentes, conversas diferentes, histórias diferentes. Entrei em um bar do outro lado da cidade, que eu nunca havia entrado antes. Sentei. Pedi uma taça de vinho. Não tinha. Uma taça de espumante. Não tinha. Aí, já um pouco irritada, pedi a garrafa mesmo do vinho branco gelado. Ao menos estava gelado.

Comecei a me arrepender de ter saído. Afinal, por que mesmo ir a um lugar diferente? Não tinha a minha bebida, eu não conhecia pessoa alguma, não tinha com quem conversar. Roberto estava em casa a minha espera. Por que agora, por que hoje? Enfim, chegou o vinho. Sentei sozinha e servi a primeira taça. Observei tudo a meu redor. As paredes com cartazes de filmes antigos, mesas, cadeiras... um ar decadente que não sabia se era intencional ou não... Peguei meu celular e comecei a viajar na internet de blogs e outras histórias, seguindo minha busca pelo diferente. Mas, por mais que a maioria das histórias até parecesse o retrato de algo real, eu sabia que nunca colocamos no papel a verdadeira verdade. Sempre escrevemos nossa história de forma a nos preservar, a justificar nossas atitudes, a glamourizar os acontecimentos, a eternizar o efêmero. Por mais que escrevendo estejamos, assim, nos expondo, nossa história nunca representa a verdade. Nem esta história que agora estou contando é inteiramente verdadeira.

Enfim.... cansei das meias-verdades das meias-histórias que estava lendo na internet e voltei a me concentrar no que ocorria a meu redor. Afinal, saí buscando o diferente-real. Se fosse para conhecer o diferente-inventado, eu poderia ter ficado em casa. Assim retomei meu foco. Mas, mal deu tempo de desconectar o celular e dei de cara com ele sentado na mesa em frente –e incrivelmente próxima– a minha. Ele, bem de frente para mim. Olhos de todas as cores. Vidrados. Eu, ainda meio entorpecida por ter ficado tanto tempo alheia, perdida em um mundo virtual, não entendi direito o que me circundava.

Pensei: será que eu ainda tenho tempo para fazer tudo diferente? Em outras circunstâncias, em outros tempos, teria sentado à sua mesa, pedido um cigarro e dado um gole em sua bebida. Mas essa Rosa não é mais a mesma. Desviei o olhar, tomei mais um pouco do meu vinho, chamei o garçom, pedi o cardápio, não o deixei ir embora e já pedi um sanduíche. Tudo muito rápido. Tudo muito nervoso. Tudo muito ansioso. Tudo com pressa de estar subitamente ocupada.

Não adiantou. Ele permaneceu olhando fixo em minha direção. Levantou-se e começou a andar. Eu, desesperada, sem saber o que fazer, abri a bolsa e comecei a procurar por algo que nem eu sabia o que era. Ele passou por mim e não parou. Senti um misto de alívio e decepção. Parte de mim gostaria que ele tivesse parado, outra parte lembrou-se da estranheza que causa conhecer um mundo novo. Ele não voltou. Bebi o restante do vinho, comi um pedaço do sanduíche que eu nem gostei, paguei a conta e fui embora.

Dirigi até em casa pensando o quão fracassada havia sido aquela noite. Percebi que a Rosa não era mais a mesma e que havia mudado tanto que chegava a ficar aliviada por não ter que conversar com outra pessoa. Que preferia o diferente-inventado ao diferente-real. Afinal, quem eu pensava que era para achar que bastava o meu querer para imediatamente transformar Rosa? Essência não se muda! Mas qual era a minha essência mesmo?

Uma vez constatado que eu já tinha sido umas mil Rosas, quem seria Rosa afinal? E se eu não gostava mais da Rosa que estava sendo, poderia voltar a ser outra que já fui ou inventar uma que ainda não existiu? Não sabia. Entrei no quarto na ponta dos pés, troquei de roupa e deitei ao lado de Roberto. No mesmo lado. Há quatro anos. No mesmo lado. Do mesmo jeito. Uma constância que matou minhas inconstâncias.

Na noite seguinte, voltei sozinha ao bar do outro lado da cidade. Sem celular e com uma bolsa minúscula, apenas com chaves, documentos e dinheiro. Fui esperando encontrar o homem da mesa em frente. Não o encontrei. Chamei o garçom, pedi o cardápio. De repente, ele, com seus olhos coloridos por todas as cores, me surpreendeu já sentando à minha mesa, com vinho, duas taças e um cigarro aceso. O nome dele: Fábio.

Conversamos por um tempo. Ele contou que esteve em Paris, eu falei que há muito não via a luz rosa. Eu contei que era escritora e ele disse que estava escrevendo seu segundo livro. Perfeito, pensei. Ele disse que se separou há um ano porque a esposa não compreendia seu mundo de histórias e verdades inventadas. Eu pensei que podia compreender exatamente o que ele dizia. Eu não disse que era casada. Ele me deu um beijo como os de cinema, me agarrou pela cintura e juntou minha cadeira a sua.

Na noite seguinte, eu, novamente, no bar no outro lado da cidade. Ao mesmo tempo livre e ao mesmo tempo protegida de olhos conhecidos. Precisava estar com aquele dos olhos coloridos. Assim passei quinze dias. Quinze dias atravessando a cidade. Quinze dias inventando verdades para Roberto. Quinze dias no mundo de Fábio. Mundo excitante. Mundo diferentemente real. E eu que ansiava tanto pelo diferente...

Percebi, então, que essa era a oportunidade. E estava ali, na minha frente. Percebi que era minha chance de mudar. Percebi que aquela Rosa estava morrendo e que urgia inventar uma outra... inédita, real. E eu precisaria das verdades inventadas por Fábio para isso. Assim, arrumei a mala sem que Roberto entendesse o que acontecia. Expliquei que a Rosa estava morrendo e que precisava de outro mundo para viver, mas ele não entendeu e ainda perguntou: que rosa? Ora que rosa, esta Rosa! Não adiantava. Ele nunca iria entender. Combinei uma data para buscar minha parte dos móveis, deixei a cópia da chave na palma de sua mão, dei-lhe um beijo e saí em busca de outro mundo.

Voltei, junto com Fábio, para a casa de minha infância. Há anos aquela casa estava fechada. Sempre quis vender, mas nunca tive coragem. Talvez sempre soubesse que um dia voltaria para lá. E ele era o homem mais maravilhosamente excitante que eu conhecia. Fábio entregou seu apartamento alugado e mudou-se comigo, levando consigo sua mobilha e seu mundo. Mundo perfeito, que se encaixava exatamente no meu.

Criamos nossa própria constância. Ele passava o dia em casa, escrevendo seu livro. E eu seguia a minha rotina de sempre, com minhas histórias. Cada dia uma história diferente, uma nova verdade inventada. No fim do dia é que meu dia começava: ele servia o vinho e nós conversávamos sobre tudo. E cada vez eu tinha certeza que era assim que deveriam ser as coisas. A casa, ele, seus olhos coloridos, nosso mundo inventado movido pela imaginação.

Passados quase três meses, o livro de Fábio já estava perto do fim e eu não sabia sobre o que tratava a história. Ele nunca me deixou ler. Sempre disse que eu só leria quando estivesse publicado. E nossa constância peculiar seguiu. Engrenagem em perfeito funcionamento. Mas, um dia, cheguei em casa no fim da tarde e ele me serviu um vinho quente. Onde estaria o que deixei na geladeira? Mas não perguntei, só pensei. Coloquei uma pedra de gelo em meu vinho. Sentei em seu colo de frente para ele, acendi um cigarro e bebi assim mesmo. Ele não me olhou, nem me abraçou. Apenas colocou o cigarro no cinzeiro sem apagar, me deu um beijo demorado e arrebatador como os de cinema, como o primeiro... e me deixou sozinha na sala. Eu o segui até o quarto e deitei a seu lado. Mas ele se virou imediatamente para a parede. Dormimos assim: lado a lado e cada um para um lado.

Na manhã seguinte, saí cedo e Fábio ainda dormia. Passei o dia com uma sensação estranha que eu não conseguia compreender de onde vinha. Não eram as vozes em minha mente. Era como que um aperto no meu coração. Acho que era medo. Acho que era amor. Quando cheguei em casa o amor continuava, mas o medo tinha ido embora. Junto com a televisão, parte da mobilha, o carro dele na garagem, todas suas roupas e seu mundo. Em cima da pia, um cigarro mal apagado no cinzeiro, uma garrafa do meu vinho preferido no balde com gelo, uma taça de cristal azul, a cópia da chave e um bilhete com o esboço da dedicatória do livro:

“Para aquela que melhor entendeu meu mundo de histórias e verdades-inventadas; para aquela cujo mundo e imaginação preencheram o meu até que nada mais de meu sobrasse nele; para aquela que tive de abandonar para continuar a existir... para Rosa.”

Acho que procurando pelo diferente, acabei encontrando o igual. E assim descobri que nenhuma das Rosas que fui ou que venha a ser expressará a essência de quem sou. Descobri que a inconstância é a essência de Rosa! E, ao que parece, de Fábio também. Abri o vinho, servi-o na taça azul, sentei-me no avarandado e contemplei a vista há tanto conhecida e sempre diferente.


Marcadores: , |
5 Responses
  1. Denise! Says:

    Nossa muito bom!
    Pobre Rosa, Forte Rosa...


  2. Deb Says:

    Vai publicar teu livro guria!

    Mesmo!

    Tu escreve muito bem. Sou fãzoca!


  3. Mari F Silva Says:

    Li a Rosa como não lia ninguém há um bom tempo!

    Me encantei! Virei fã!


  4. MEMÓRIAS Says:

    Que bom que vocês gostaram, gurias!!!

    A "Rosa" agradece!!


  5. Unknown Says:

    oi.gostei do teu blog.........
    estava navegando..........

    bju


Postar um comentário

Obrigada pela visita...