MEMÓRIAS
SUGESTÃO: LEIA O PRIMEIRO CONTO E O SEGUNDO CONTO ANTES, OU NÃO...


Por que no natal? Por que as pessoas voltam no natal, se desculpam no natal? Enfim... Será a proximidade com o fim do ano? Será a religiosidade da data? Mas ela não era religiosa.... não que eu soubesse. Então, por que no natal?

Assim foi que, em uma véspera de natal, ouvi a campainha estridente tocar. A mesma campainha que cerca de três anos antes fiz silenciar ao copiar as chaves para Carol. Agora, Carolina voltou a tocar a campainha. Abri a porta e lá estava ela, parada. Olhos tristes como eu nunca havia visto antes. Nem quando ela foi embora há quatro meses e dois dias. Não. Naquela vez, pareciam que ter um brilho de aventura, descobertas, novidade. Hoje, estão apenas tristes.

Mandei-a entrar. Sem beijo, sem abraço. Como se ela tivesse voltado rapidamente apenas para buscar algo que esqueceu. Estava eu, já atrasado, terminando de me arrumar para ir a casa de minha mãe. Natais são sempre com a família. Sempre. E ela sabia disso. De toda forma, lembrei-a que eu tinha pressa. Até então ela não havia dito coisa alguma. Entrou e permaneceu parada enquanto eu corria de um lado a outro do apartamento quarto-e-sala como que ignorando sua presença.

Tirei a bermuda de ficar em casa –afinal, ela já tinha visto tantas vezes antes essa cena, não vi porque não o fazer. Ela permanecia parada. Coloquei o terno sem casaco. E ela parada. Não perguntei o que queria e pedi que ajudasse a dar o nó na gravata. Ajudou. Disse-me, então, que tinha vindo buscar algo que esqueceu. Lembrei-me, na hora, com raiva, da camiseta vermelha que eu tanto gosto. Achei que ela a tinha deixado para mim. Não acredito que, justo no natal, ela viria buscar.

Perguntei, já bravo, o que era. Ao que ela respondeu que buscava pelos batimentos fortes de seu coração. Disse que os procurou em toda parte e não os encontrou. Aí parou para pensar e concluiu que o último lugar que os havia visto era aqui, desde o momento em que entrou [meio sem querer] pela primeira vez em minha casa. Atônito, só conseguia me concentrar nas lembranças que surgiam em flashes a minha frente. Fragmentadas, contando histórias de todo o tempo desde que conheci Carol. Passaram como um filme. Mas com partes sublinhadas tal qual um bom livro.

Lembrei quando a vi pela primeira vez na casa de praia de um amigo. Maurício me convidou para passar uma semana na casa de sua família, na praia do Rosa, Santa Catarina. Nunca tinha ido para lá. Não gostava da falta de estrutura da cidade e não gostava do nome da cidade. Lembrava-me de Rosa. Como não tinha coisa melhor para fazer e a viagem era econômica, fui. Ele havia reunido uma turma relativamente grande, dois casais, duas mulheres solteiras –dentre as quais Carolina estava incluída–, ele e eu.

Fomos todos de carro. Em mais de um. A viagem não é curta, o Rosa fica há umas cinco horas de Porto Alegre, mas a comodidade de ter um carro por lá compensava. Naturalmente, quando cheguei, os quartos já estavam todos distribuídos. Era um terreno grande onde estavam construídas duas casas: uma principal, outra de hóspedes. Assim foi que, os solteiros, naturalmente, ficaram na casa maior. Quatro quartos. Um para cada um. Do meu, via-se a praia.

Daqueles amigos dele, eu conhecia apenas um dos casais e Maria –a outra solteira–, todos da redação do jornal que, uma vez por mês, publicava meus artigos. Fui apresentado, de pronto, a Carolina que, mais rapidamente do que nossa intimidade permitia, se tornou Carol. Ela era meia-irmã de Maurício, filha do segundo casamento de seu pai. Cabelos lisos, castanhos, olhos cor de mel que às vezes ficavam verdes, pele de uma brancura incompreensível se comparada ao bronzeado de seu irmão. Estudava teatro na UFRGS e não sabia o que queria da vida. Só sabia que, naquele momento, queria estudar teatro.

Na primeira noite, resolvemos cozinhar algo em casa. Estava muito tarde e muito frio para sairmos. Tínhamos o mais importante: vinho, amendoins e salgadinhos. Essa foi a janta. Obviamente, em pouco tempo estávamos todos com aquela leveza própria de taças de vinho ingeridas quase em jejum. Todos eram amigos, a vida era maravilhosa, as histórias mais íntimas tornavam-se públicas em questão de segundos. Jogo da verdade, disse Maurício. Carol concordou ressaltando que só valiam verdades, nada de conseqüências. Todos toparam. Começamos com perguntas banais sobre a quantidade de transas ou de melhores lugares para sexo; que foram seguidas de reflexões mais profundas: o que tu esperas de um relacionamento? O que esperas da vida ou o que a vida pode esperar de ti?

Aí começaram os problemas. As esperanças de Flávio não coincidiam com as ambições de Roberta e ela saiu da brincadeira. Ao que, obviamente, se seguiu a saída dele. A fim de evitar conflitos semelhantes, Paula e Renato também se retiraram e foram para a casa de hóspedes. Restaram, assim, nós –os solteiros–; agora com conseqüências, que não valiam entre Maurício e Carol, por óbvio. Errando uma pergunta, beijei Maria. Errando outra, Maurício beijou Maria. Acertando seus gostos, adivinhando sua história e querendo seu futuro, beijei Carol. E beijei Carol pelos dois dias que se seguiram. E pelas cinco horas que nos separavam de Porto Alegre. E pelo resto da semana em que não nos separamos.

Assim, conheceu pela primeira vez meu apartamento. Onde levou mais de ano para voltar. Descobriu ter sido aprovada para cursar dois semestres em uma universidade argentina –parece que a escola de teatro é boa por lá. Nesse ano sem Carol, ela voltou a ser Carolina e eu tornei-me namorado de Maria. Sim, a mesma Maria da redação, da praia, da casa, do jogo, do beijo. Mas ela era muito nova, não sabia o que queria da vida e, afinal, Carolina estava de volta querendo voltar a ser Carol.

Voltou. Entrou novamente em meu apartamento. Chegava todas as sextas, tocava a campainha estridente e saía todas as segundas. Até que numa sexta eu não agüentei mais ouvir aquele som estridente e copiei minhas chaves para Carol. Na outra sexta ela entrou silenciosamente e não foi embora na segunda. Ficou.

Ficou por tempo suficiente para que me ensinasse a importância da iluminação para uma peça de teatro e o que significa a fotografia que é premiada no Oscar. Ficou para saber que eu só escrevo sob pressão e que anoto nos rascunhos de mensagens do celular cada vez que tenho uma idéia nova, porque não sei usar as notas rápidas do smartphone. Ficou o suficiente para querer reformar a casa, abrir uma cozinha americana e pintar a sala de verde. Ficou para chorar no meu colo o infarto fulminante da tia de quem tanto gostava. E para ver meu sorriso mais sincero ao aplaudir sua estréia no Theatro São Pedro com casa cheia.

Tudo isso passou em minha mente em menos de meio segundo. Só que os flashes pararam. Pararam quando me lembrei da alegria em seus olhos ao trancar a faculdade e ir embora com um diretor para a Espanha. Lembrei-me da noite que não voltou para casa e que eu a procurei por todos os hospitais da cidade durante toda a madrugada. Lembrei-me de quando ela resolveu que não dormiria mais em nossa cama. Lembrei-me dos sussurros ao telefone quando falava com não-sei-quem. Lembrei o quanto emagreci nos dias que seguiram àquele em que surpreendi sua boca em outra boca e suas malas no corredor.

Nessa véspera de natal, seus olhos estavam tristes como eu nunca havia visto. Talvez como os meus devem ter ficado com sua ausência. Perguntei por que no natal. Ao que ela respondeu não.


- Não vim pelo natal. Na verdade, já estou atrasada.


Parou, passou a mão por entre os cabelos, prendeu-os num nó e continuou.

- Vim pelos quatro meses e dois dias que não sinto meu coração bater como antes. Queria ter vindo anteontem. Não tive coragem. Cheguei até a esquina, mas quando lembrei que não poderia colocar o carro na garagem e que teria que voltar a tocar a campainha, desisti. Ontem, nem consegui sair da cama pensando que se eu viesse aqui e você me chamasse de Carolina seria o meu fim. Você chamou.

Carolina agora falava você. Não sei como quatro meses na Espanha a fizeram falar você. Nunca fui atingido por grandes gestos de amor. Eles sempre me soaram falsos. E mais falsos ainda vindos de uma atriz. Disse que eu já estava atrasado para a festa e perguntei se Carolina tinha encontrado o que procurava. Nem esperei sua resposta e saí apressado. Entramos no elevador, apertei o térreo para ela e a garagem para mim. Abri a porta. Ela saiu. Sem abraço, sem beijo, sem os batimentos fortes que buscava.

Fiquei na casa de minha mãe até umas duas horas. Voltei ao apartamento. Encostada na porta estava Carolina. Seus olhos agora não eram mais tristes. Eram desesperados. Molhados, tornaram-se quase verdes. Me abraçou. O abraço mais forte que já havia sentido em toda a vida, até então. Abri a porta, abri um vinho e propus: jogo da verdade! Carol topou. Assim, sentada no tapete que ela mesma tinha escolhido, disse-me que às vezes o que define um relacionamento é outro relacionamento. Precisou ver seu coração quase parar para perceber o quão forte ele batia.

Com isso eu esqueci aquela alegria que vi em seus olhos no dia em que sua boca tocou outra boca. Esqueci os sussurros ao telefone, os sumiços e todo o resto. Só aí percebi que meu coração também andava meio fraco. Afinal, ele estava se recuperando de uma queda de três andares. Percebi que seu abraço, sua tristeza, seu pranto e suas palavras reconectaram todas as veias e artérias do meu coração.

Levantei. Peguei Carol pela mão e levei-a de volta para a cama de onde nunca quis que ela tivesse saído. Toquei sua boca com a minha boca e seu corpo com meu corpo, num abraço mais forte ainda. Assim, nossos batimentos acertaram o compasso novamente e, juntos, voltaram a bater forte. Assim, a campainha não soou mais estridente. Que bom que foi no natal, em tempo para o reveillon...




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3 Responses
  1. Deb Says:

    Oi!

    Tu escreveu um comentário no blog da minha irmã, Denise, e eu vim parar aqui.
    Parabéns! Amei o texto!
    Não conseguia parar de ler - favoritei!


  2. Unknown Says:

    Tão lindo, Daia! Uma atmosfera meio "Brilho Eterno", meio "Closer". Teus textos tem um tom de dia cinza que adoro (meu sonho é morar em Londres: nem escura, tipo a tristeza de Porto Principe; nem clara demais, frívola como o Rio de Janeiro, cinza!), um andamento bacana, de respiração meio presa. A gente na expectativa de que algo vai acontercer! Excelente, mesmo!

    Parabéns, minha Clarisse Lispector

    21 de janeiro de 2010 21:35


  3. Anônimo Says:

    Lindo demais esse texto. Me tirou uma lágrima. Vou ler os outros agora!


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